A beleza de ser só mais um
A Pauliceia, hoje tão desvairada como nos tempos de Mário de Andrade, ganha um guia à sua altura. Nele João Correia Filho, que já desvendou os recantos mais charmosos de Lisboa e Paris, brinda o leitor com dicas preciosas sobre a cidade de São Paulo. Ele revela como a terra da garoa - que já foi de taipa sob os jesuítas - adotou o tijolo do ecletismo de Ramos de Azevedo e projeta no horizonte presente o pluralismo da sua ampla diversidade étnica e cultural. Mas, ao contrário dos guias convencionais, este vai descortinando os meandros de cada bairro, ruas, edifícios e museus pelos registros literários de quem cantou a cidade em prosa e verso - dos autores clássicos aos contemporâneos, dos consagrados aos alternativos e "malditos". Flâneur à la Baudelaire, o autor não esconde que alguma coisa acontece em seu coração, e não apenas quando cruza a Ipiranga com a Avenida São João. Suas linhas transbordam a paixão pela megalópole autofágica, que diariamente constrói e destrói coisas belas. Por isso este guia vem em boa hora. Ele recupera retalhos de memória da capital que esconde tesouros insuspeitos até para o mais atento dos viajantes. Deixe-se levar e surpreenda-se. O passeio é recompensador.
- Editora Leya
São Paulo, literalmente
5 pontos turísticos mais visitados:
Parque do Ibirapuera
21.08.1954
Catedral da Sé
25.01.1954
Rua 25 de março
Século XIX
MASP
1947
Avenida Paulista
Século XIX
João Correia Filho é jornalista formado pela Universidade Estadual Paulista de Bauru, especializado em fotojornalismo e jornalismo literário. Junto à editora Leya, publicou três guias turísticos literários: Lisboa em Pessoa - livro ganhador do prêmio Jabuti 2012, na categoria Turismo -, À Luz de Paris e São Paulo, literalmente, que aborda São Paulo nos olhos de grandes escritores, desde os jesuítas até os autores atuais. Em entrevista sobre seu último livro, João Correia Filho, receptivo e bem humorado, conta como se deu o processo de escolha da cidade e confessa seus amores pela cativante e inspiradora metrópole intensa, casa de grandes nomes da arte.
Qual foi sua motivação na publicação de um livro sobre São Paulo?
João Correia Filho: A opção por São Paulo foi justamente por ter uma escassez de guias da cidade. São Paulo é uma cidade que não se vê como turística. É uma cidade que assusta as pessoas, porque pensam nela como uma cidade violenta, uma cidade de concreto. Optamos por fazer São Paulo por aceitar esse desafio de trazer essa São Paulo literária, como no modernismo. Então, até hoje, é uma cidade que tem uma veia literária muito forte, acho que o grande exemplo disso são os saraus de poesia. Por conta desse desafio tanto editorial quanto pessoal. E é uma cidade em que eu morei mais de 10 anos. Onde eu trabalhei e onde minha carreira começou a se configurar no que é hoje.
Qual é a finalidade de seu livro, além de turística?
JCF: É um guia que eu espero que agrade as pessoas comuns. Faça despertar a literatura nelas. A intenção não é descobrir em busca de agradar grandes letrados. Não quero assustar, quero que tenham novas leitores. Prefiro que as pessoas falem “Li seu livro e me deu vontade de ler outros”.
Há, no Brasil, e sobretudo em São Paulo, a prática de colocar a cidade como inferior às outras ou pior que elas. Por que acha que isso ocorre?
JCF: Sim, eu acho que temos a síndrome do vira-lata, como é visto no caso das ciclovias, em que o brasileiro julga melhor o projeto cicloviário no exterior. Existe um estereótipo de São Paulo. O paulistano gosta de São Paulo, não tem tamanha visão negativa da cidade. Quem vem de fora é que adquire essa ideia, porque ela tem todos os problemas de toda grande metrópole: violência, trânsito, mas isso não é prerrogativa de São Paulo, o que é um pouco irônico, pois todas as grandes cidades têm isso. Então, eu acredito que haja uma ideia estereotipada de quem não conhece a cidade, maior até do que a síndrome de vira-lata. Nenhuma cidade é perfeita. Tenho amigos que não saem de São Paulo por nada, é um lugar que vicia. Há esse estereótipo de cidade de concreto, muito rápida, que é construído historicamente, mas há como desvencilhar-se do mesmo.
Dê um motivo para a maior valorização da megalópole. De que modo apreciá-la?
JCF: Pessoalmente, uma coisa que sempre me encantou são as contradições, e São Paulo é uma grande contradição. Ao mesmo tempo que é uma cidade de concreto, uma cidade rápida, ela tem aquele “lugarzinho” especial. Essa contradição que sempre me moveu. E eu acho que as metrópoles e as megalópoles incorporam isso. Não dá para falar que São Paulo não é uma poesia. Primeiro que ela é uma poesia por si só, tanto romântica quanto grossa. Por exemplo, o Tarso de Melo, um poeta que eu adoro e que finalizou meu livro, escreve sobre São Paulo e sua suburbanidade, e ele consegue ver poesia de uma forma que é excepcional. Ele fala, em uma de suas obras, das páginas de um livro que é todos, mas não é nenhum. São Paulo é todas as cidades, porque não é nenhuma. Em São Paulo você é “o cara”, mas não é ninguém. O que chama minha atenção é justamente a contraposição, a contradição. O que talvez as pessoas de fora e em um curto período de tempo têm dificuldade de enxergar é a beleza que tem essa adrenalina, essa multidão, a beleza de ser só mais um. A poesia que existe no próprio concreto, na velocidade. Eu acho que os modernistas surgem numa São Paulo em transição para metrópole, onde poesia é vista nas buzinas, no movimentar dos bondes, a poesia das máquinas, futurista. Sabendo disso, eu acho que a minha busca é a poesia onde, aparentemente, não há. Eu me sinto muito feliz por sintetizar minha busca na capa do meu livro, que é um passarinho num monumento concreto que representa a força de São Paulo (Monumento às Bandeiras). São as contradições. Eu amo e detesto São Paulo. E amo e detesto Bauru (atual cidade em que o autor reside).
Qual autor citado no seu livro representa melhor ou aborda a cidade de uma maneira semelhante à sua?
JCF: De várias formas, vários me representam. De uma maneira, o Tarso me representa muito, pois a poesia me atinge intimamente. No entanto, eu acho que Mário de Andrade me representa de uma forma mais completa. Primeiro, o Mário encarna a contradição, em todos os sentidos. Ele era futurista, nacionalista e, ao mesmo tempo, um autor com o olhar lá fora, lá na frente. Ele também tinha a questão da sexualidade contraditória, era um “baita” de um “homão” e delicado. Sendo assim, acho que ele captou muito bem essa contradição e ironia da cidade. Ele me toca até por sua história ser um pouco parecida com a minha, pois teve uma infância pobre, foi funcionário público. Não era milionário como os outros poetas. Seu livro de poemas, Pauliceia Desvairada, mostra o coração de São Paulo. Não tem como pensar no Mário de Andrade e não pensar em São Paulo. Ele só escreveu sobre São Paulo. Viveu em São Paulo. Dos autores mais recentes, um que me impressionou foi Luiz Rufatto, que nem paulistano é. eles eram muitos cavalos* é um livro extremamente paulistano. Foi um livro que me tocou muito, suas histórias ficaram semanas em minha cabeça.
Você diz que a literatura paulistana está, atualmente, nos saraus das periferias da capital. Por quê? Pode citar exemplos?
JCF: Eu fiz questão de frisar os saraus no meu livro, pois acho que, por muito tempo, os saraus da periferia, assim como a periferia propriamente dita, foram estudados somente pela antropologia, como eventos sociais, e não culturais. Durante muito tempo, eles não foram reconhecidos pelo que têm de literatura, isso era considerado como segundo plano, de segunda linha. Então, a minha justificativa para abordar esse assunto foi mostrar que tal movimento é cultural, para deixarmos de considerá-los inferiores. A função da arte é de subverter, mudar. Nada mais tem subvertido ao longo dos anos do que os saraus. Um exemplo disso é o Sarau do Pinho, que acontecia num boteco e agora é realizado no Instituto Itaú Cultural, um lugar da elite intelectual. Quantos poetas não surgiram dessa maneira? E quantas pessoas não deixaram de estar fadadas para uma vida pior por isso? Como eu. Se não fosse a literatura, talvez eu não estaria aqui hoje dando uma entrevista, fazendo uma coisa que amo como trabalho. O Mário de Andrade é um critico ferrenho disso. Ele diz que o movimento modernista era elitista e burguês, e não tinha o objetivo de realizar grandes mudanças. Assim como a Bossa Nova. Eu não vejo, na cidade de São Paulo, outro movimento que supere o sarau. Eu não vejo outro melhor representante da cidade, hoje em dia, do que o Sérgio Vaz (poeta) ou o Binho (poeta e escritor), por exemplo, que são artistas que vão para a rua, expõem sua poesia em lambe-lambe e tiram a literatura dos circuitos regados a champanhe. Não tem como alguém dizer que conhece o panorama literário paulistano sem experienciar o sarau, que é um espaço democrático, deles para eles. Não dependem de ninguém. A arte tem que criticar e mudar as coisas. Existe uma ideia muito equivocada de que só no passado foram feitas criações boas. O mesmo acontece com a música. Na periferia mesmo está para surgir uma produção tão boa quanto Racionais MC’s. Meu objetivo, nesse sentido, é de quebrar tal lógica.
Que ponto turístico desconhecido você acredita que exprime de melhor forma o amor do paulistano pela cidade?
JCF: Um lugar que me chamou muita atenção, que é “subconhecido” e deveria ser mais, é a casa do escritor Guilherme de Almeida, que é, para mim, a grande representação do universo literário. É uma ótima visita cultural. Como casa, é linda. Como museu e forma de entender a arte, é incrível. Nesse exemplo, vê-se um pouco o complexo do vira-lata, porque viajamos para fora e vemos a casa do Victor Hugo, que é tão interessante quanto a do Guilherme. Fez-me questionar: como é que as pessoas não conhecem essas coisas?
Descobriu algo inusitado que desconhecia sobre a cidade de pedra?
JCF: O que eu descobri, além da casa do Guilherme de Almeida, foram as casas modernistas em São Paulo, que eu sabia da existência, mas nunca as tinha visto. A primeira casa modernista, por exemplo, é de 1927 e é aberta a visitas. Ambas as casas foram grandes descobertas, para mim. Outra pérola da cidade é a Livraria Calil, que fica na Rua Barão de Itapetininga. É um universo bem desconhecido e representativo da literatura e da cidade, é o sebo mais antigo de São Paulo.
Quais são os motivos que atraem turistas do mundo todo para a Grande São Paulo?
JCF: Em primeiro lugar são negócios. Em segundo, acredito que, do universo que conheço, seja a oferta cultural, por ter os principais museus do país. Meus amigos normalmente vão à cidade para ver uma amostra ou exposição. Outro advento que deve atrair turistas é a grande diversidade gastronômica. A Avenida Paulista, como um lugar bastante frequentado por estrangeiros, é uma representação cultural da cidade, não somente um lugar bonito para passear. Lá concentram-se diversos pontos de convergência cultural, como o Conjunto Nacional, a Casa das Rosas, entre outros.
Se fosse vender a cidade, como o faria?
JCF: Venha para São Paulo, pois aqui estão os maiores museus do Brasil, ou até mesmo da América Latina. Ou, como diria Itamar Assunção: “Venha até São Paulo ver o que é bom pra tosse”.